Em primeiro lugar, me considero um homem das ideias. Viver com as ideias me traz mais felicidade do que viver com as coisas ou viver com as pessoas (embora haja muitas ideias na convivência com as pessoas e com as coisas – na medida em que isso me estimula às interações sociais, eu me sinto um vampiro).Sou, como alguns copacabanenses que conheço, um protótipo do que se pode imaginar que fossem os idealistas alemães do século XIX. Não exatamente isso, porque os idealistas alemães já foram. Eles já tiveram a chance de organizar o mundo dos homens, que é o que expõe suas fraquezas, faz nascer as suas críticas, e leva a novas ordenações. Como um cidadão do XXI, não pude, responsavelmente, ser imune às críticas ao idealismo: a pluralidade, os relativismos e os sentidos.
Mas os sentidos. A vida sensorial sempre foi para mim muito atraente, bem mais que a vida verbal. Com as palavras, tenho alguma relação de amor e ódio (a ser possivelmente explorada em próximos posts). Mas eu diria que a vida sensorial me interessa principalmente em três sentidos:
- Na medida em que os estímulos sensoriais geram novas ideias e, algumas vezes (raramente), novas sentenças.
- Como uma consequência de algumas séries de ideias, que apontam (mas, claro, não presentificam) para os sentidos como forma fundamental de perceber o mundo. Aqui dá pra citar a minha genealogia *: historicismo, existencialismo, hermenêutica e após: Heiddeger, Gadamer e Gumbrecht.
- Como uma forma de equilibrar a vida com as ideias e torná-la mais, bem, possível de viver. É o que herdei do taoísmo, de seus filhos e seus primos distantes (tai chi chuan, yoga, etc.): com isso, o espírito pode sair do turbilhão laranja de ideias e fluir para a ponta dos dedos. Ou, se preferir, a mente e as ideias se tornarem difusas pelo corpo. Isso impede que a cabeça, esse grande ringue ou bordel de ideias, exploda. Ok, mas mais que isso: faz elas interagirem com uma riqueza nova e especial (objeto de futuros posts).
Em particular, as ideias (e essas interferências da variedade dos sentidos) me leva a ter uma relação especial com as ideias de ordem e caos. Principalmente a fronteira entre elas, as travessias de um para outro. No mundo das ideias, meu passatempo preferido é a arquitetura de ideias: como juntá-las e construir com elas. Construir castelos de areia, que o vento leva e você refaz de outro jeito. É o que se faz (ou o que se faria, mas...) na vida intelectual acadêmica.
Ênfase na areia. Eu não sou um homem da ordem (qualquer um que tenha passado mais de 15 minutos comigo sabe disso :P). Não sou como os meus colegas da matemática, uma das minhas fontes de formação. Eu sempre disse que, se matemática é poesia, eu sou um linguista. Porque eu sou um homem da ordem parcial. Gosto de ter nas mãos o que eu não posso segurar, gosto de pegar isso e moldar. Ou, conversamente, ver onde o seguro, sutilmente, transborda: chupar o caos dos poros da ordem (é o que me motiva aos temas de tradições intelectuais alternativas/ outsiders, superposições de ordens de épocas diferentes na sociedade ou no tecido urbano, e diversas outras formas de olhar a desordem, sempre existente mas às vezes bem escondida, nas bordas dos sistemas ordenados). Os matemáticos viajam e constroem ao longo dos reinos da ordem. Mas sem o peso do que não pode ser abraçado, não tem graça pra mim. A verdade é essa: matemática me deixa entediado.
(É um pouco por isso que a física como vida intelectual deixou de ser uma opção para mim, no longínquo passado. No início, construir castelos de ideias usando dados experimentais como vigas foi uma ideia promissora. Mas os físicos são, hoje, muito mais chatos do que já foram. E presunçosos. E não muito tolerantes.)
A ordem parcial foi também o que me atraiu de volta para a linguística, através da via olímpica. Um problema de linguística é, essencialmente, uma maneira aberta de se construir ordens parciais para agrupar dados linguísticos de muitas cores e texturas. Uma fonte ilimitada de prazer e diversão, e que pode ser reconciliada com meu interesse linguístico mais antigo: a tubulação dos prédios da arquitetura de ideias é a arquitetura dos conceitos (e, em particular, dos pedaços de semântica).
Classicamente, isso me faria ir parar na filosofia? Provavelmente na filosofia natural. Mas outra escola me comprou, e minha linhagem foi feita em outro lugar: na história das ideias. Culpa dos supra- e antecitados historicismo (as limitações do tempo), existencialismo (as limitações da existência particular e contingente) e hermenêutica (as limitações das linguagens, as públicas e as mentais). E do taoísmo e da pós-hermenêutica, com as limitações do corpo, da matéria e do que se presentifica.
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* É interessante que, como pode parecer, em alguns cenários intelectuais (como o da historiografia francesa) as pessoas preferem se agrupar sincronicamente em "gerações" que se suscedem (Annales, Nova História, Nova Nova História, etc. – algo que, quatro anos atrás, eu gostava de chamar de "Síndrome de Revolução Francesa") e em outros (como o das humanidades na Alemanha), elas preferem um agrupamento diacrônico [não gosto dessa palavra], em "linhagens" que coexistem ao longo do tempo (e procuram traçar seus pais, avós, bisavós, etc. da vida intelectual).
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