quarta-feira, 18 de junho de 2008

Sensus Communis

Outra discussão de MSN. Estávamos eu e o Autor do Sapere Aude discutindo sobre a Navalha de Ockham. Eu dizendo que não gosto dela, que não está na minha religião, que acho que é a maior balela que já inventaram - porque teorias nunca, nunquinha, são escolhidas com base nela. Ninguém se filia a uma concepção teórica porque é a mais simples. Alias, o conceito de "simplicidade" de uma teoria não é nada bem definido - ainda mais se formos levar em conta o que Feyerabend diz sobre a incomensurabilidade das teorias científicas em geral (isto é, a impossibilidade de compará-las, por estarem fundadas em pressupostos teóricos completamente distintos).

Seguiu-se a isso uma loooooonga passagem por todos os níveis de caricaturização daquela velha história do Copérnico (desde a mais simples: "Terra no centro, que coisa idiota! Até que veio alguém esperto e pôs o Sol no centro, deu certo, e todos vivemos felizes para centre até hoje com as órbitas circulares em torno do Sol."), e a discussão sobre até onde é lícito usar a Navalha de Ockham para favorecer Ptolomeu ou Copérnico, Copérnico ou Kepler.

Até a confissão final que mudou o curso das coisas: a de que Ele (o meu interlocutor) usava a Navalha especialmente contra as famosas Teorias de Conspiração. E eu querendo encontrar uma outra forma de descartar as teorias conspiracionistas, sem agredir tanto o ponto de vista humanista. O exemplo de conspiracionismo apresentado por ele foi o do Dragão na Garagem. A história pode ser resumida no seguinte diálogo (adaptado do diálogo escrito por Ele):

- Achei um Dragão na minha garagem!
- Sério meu???
- Sério meu!
- Po, vamo lá que eu quero ver esse dragão!

- Po meu, moh mancada sua neh? nem tem dragão aí!
- Claro que tem, só que ele tá invisível!
- Ah, entao a gente joga tinta pro alto... se tiver um dragão parte da tinta vai ficar flutuando no ar aí a gente vai poder ver ele!
- Noa meu... tipo assim, ele é imaterial tambem, saca?
- Hm... a gente pode usar uma camera de infravermelho para ver a radiação emitida por ele então.
- Ah, mas ele não emite radiação porque está na temperatura ambiente...

E assim ad infinitum, com cada medição imaginada tendo uma justificativa para que o dragão não possa ser medido. Até aí nada de errado; a teoria do dragão, encarada deste modo, se ajusta perfeitamente a todos os dados experimentais que podem ser obtidos na garagem. Mas, como Ele disse, "a maioria das pessoas iria concordar que é idiota achar que ele tem 50% de chance de estar lá."

Daí é que veio a luz, e o consenso. As pessoas não acham razoável supor o dragão. Porque o conjunto de valores aprendidos por essas pessoas ao longo de suas vidas, a partir dos pressupostos culturais - que é o que dá munição à nossa capacidade de julgar - rotula o dragão como "não-razoável". Não é porque as explicações são mais "simples" (o que quer que isso signifique) sem o dragão; mas porque o dragão não pertence ao "conjunto de coisas que são razoáveis" - não pertencem ao senso comum.

Que alegria! Um conceito genuinamente humanista, que então aparece como o elemento fundamental no julgamento e na escolha das explicações sobre o mundo. As duas teorias são iguais do ponto de vista empírico; o que as diferencia são os conceitos que, em um dado grupo de pessoas, são ou não são considerad0s "aceitáveis". Poderíamos batizar isso de Navalha do Senso Comum:

Na dúvida de qual explicação escolher, fique com o que ofende menos o seu bom senso.

Fim de jogo.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Islândia

Uma das coisas mais divertidas de se fazer é futurologia (como será o mundo quando...?) e futuro-do-preterito-logia (como seria o mundo se...?). Então vamos lá.

A idéia surgiu em mais uma madrugada de conversa fiada no MSN. Estávamos falando sobre como a história nos ensina (é, historia magistra vitae mesmo, falou?!) que grupos extremamente irrelevantes na periferia de grandes impérios e civilizações, justamente por serem irrelevantes e ninguém ligar para eles de início, freqüentemente viram o jogo e passam a ditar as regras no mundo (e um viva à imprevisibilidade dos acontecimentos humanos! \o/). Mongólia, Inglaterra e Japão são três exemplos que dispensam maiores explicações.

Daí, como numa boa conversa fiada de madrugada de MSN, surgiu a pergunta: em que povo irrelevante da atualidade vocês apostam para ser uma grande potência política e/ou cultural no futuro? E a minha aposta: Islândia!

Na verdade não só a Islândia, mas o Mundo Nórdico como um todo. Explico. Desde os saques vikings no século IX, o Mundo Nórdico não tem nenhuma relevância especial para o curso dos acontecimentos mais globais da Europa e, por tabela, do Ocidente (que era e continua sendo, em boa medida, sinônimo para “Europa Estendida”). Nunca exerceram grande influência no resto da Europa, não representaram participação significativa em nenhuma grande guerra européia (talvez um pouco na Segunda Guerra Mundial). No entanto, hoje são os países com o maior IDH do mundo (a gente sempre se surpreende, na escola, quando ouve isso pela primeira vez). Um bom sinal de relativa irrelevância no passado, e de potencial para fazer coisas num futuro não muito distante.

Claro que eu não estou falando em dominação política, que isso nem faz muito mais sentido no mundo de hoje. O Japão, por exemplo, tradicional ilha periférica e insignificante no mar da China, nunca teve nenhuma dominação política externa pronunciada (afora os surtos de grandeza da Segunda Guerra), mas devorou pílulas de ocidente numa velocidade assustadora e hoje domina de forma muito forte o cenário cultural mundial. Como o meu irmão diz: todo desenho animado agora tem traços de Mangá e de Anime. O Japão virou o maior exportador de modinhas orientais para o ocidente.

E desse ponto de vista, o cultural, que eu vejo um futuro interessante para o Mundo Nórdico. Eles têm uma produção artística muito característica (e muito bem financiada), bastante própria e diferente dos padrões ocidentais comuns. Na última Bienal de Arquitetura de São Paulo (a de 2007), me surpreendeu a grande quantidade de mega-projetos dinamarqueses de urbanismo sendo executados em cidades chinesas!

O cenário fica 20 vezes mais favorável se formos pensar na música. Finlândia e Noruega são países claramente destacados em dois tipos de experimentalismos musicais de ponta: o experimentalismo da musica erudita / acadêmica, e a incorporação de elementos eruditos nos cantos épicos do Metal \,,/. Outro tipo de experimentalismo, que me atrai especialmente, é o que é praticado na Islândia. A começar pela Björk, um dos maiores ícones do mundo da musica pop – tornando o experimentalismo musical algo pop o.O – , primeiro arauto do que virá (ela inclusive tem uma agência na islândia para financiar novos artistas talentosos). O último CD dela, Volta, como um cântico da globalização, é bem simbólico.


Os islandeses em geral me passam uma impressão muito forte de que estão falando da cultura ocidental mas ao mesmo tempo estão fora dela (como o Debussy com as escalas cromáticas, em relação à musica tonal). Esse “olhar extraterrestre” sobre nós, me parece, é essencialmente o que faz da música islandesa tão interessante para o ocidente em geral. Tudo isso com uma lírica que é muito, muito característica de toda música que vem daquela ilha. Novamente, a Björk é um ótimo exemplo.

E daí o experimentalismo, a falta de pudor com pegar todos os elementos da cultura ocidental e ficar brincando com eles. Outro exemplo extremamente elucidativo é o da Amiina, grupo de quatro meninas (originalmente um quarteto de cordas) que lançou seu primeiro CD em 2007. Sobre o início do grupo, o site delas diz: “They gathered together every last instrument they could find and piled them into their car”. Depois disso, elas ficam aparecendo em programas de TV tocando serrotes com arco de violoncelo e produzindo harmonias em conjuntos de campainhas de secretária! Com relação ao arco de violoncelo, talvez tenham aprendido com o Sigur Rós, cujo vocalista e guitarrista já o usa quase sempre em sua guitarra.


Já estou começando a ter visões. Björk abriu as primeiras portas e talvez seja lembrada no futuro como uma espécie de matriarca. Sigur Rós e Múm estão despontando como bandas de fama internacional consolidada (com direito a serem usadas constantemente nas trilhas sonoras de reportagens do Fantástico). Amiina, no rastro do SR, são um dos exemplos do que está surgindo agora-agorinha. Quem sabe o que virá pelos próximos dois ou três anos? Logo logo, de forma cada vez mais difundida, a label “musica islandesa” estará associada à música experimental, a uma outra forma bem sucedida de encontro entre o rock e a musica erudita, a um padrão musical bem característico e visto em geral como de alta qualidade. Se o Sigur Rós continuar o trabalho deles na linha atual, isso vai levar a uma divulgação crescente, junto com as músicas, de outras práticas culturais exóticas e dos cenários naturais estonteantes e extraterrestres da Terra do Gelo. O turismo natural, associado ao turismo musical, vão crescer – primeiro dentro da Europa, depois envolvendo Estados Unidos e (quiçá) América Latina. Os pubs de Reykjavik vão começar a encher, todo mundo atraído por ver apresentações dos seus músicos preferidos em seu habitat natural. Reykjavik, como um todo, vai se tornar uma cidade referência em termos musicais. Todo mundo vai falar desse país que, até a década de 50, era não muito mais que um distrito da Dinamarca. O processo, como um todo, só vai ser reforçado pelos atrativos do resto do Mundo Nórdico: a atenção à Islândia atrairá mais atenção para seus vizinhos; a atenção para os atrativos de seus vizinhos aumentará ainda mais a visibilidade da Islândia. =~~~~~~

Os próximos anos ainda têm que ver um dilema ocidente x china na definição do perfil cultural deste mundo globalizado, num primeiro momento. Mas pelo menos no primeiro lado desse dilema, a voz dos homens do gelo tem muito o que acrescentar ao desenho do quadro.

Identidades Escolares

Aproveitando o tema das identidades, deixa eu desenvolver um sobre o qual eu andei pensando: as identidades escolares.

Claro, a coisa mais normal do mundo é alguém desenvolver um sentimento especial pela sua turma de colégio, que possivelmente acompanhou esse alguém por alguns dos anos mais marcantes de seu amadurecimento. Mas aqui eu estou falando de outra coisa: não do vínculo com as pessoas conhecidas e importantes, simplesmente, mas de um vínculo que envolve também todos os alunos do colégio que esse alguém nunca conheceu e nunca conhecerá (incluindo os que estudaram lá no passado), além da própria estrutura e do nome do colégio – uma autêntica comunidade imaginada.

Esse sentimento é especialmente forte no Colégio Pedro II, aqui no Rio. Conheço não-poucas pessoas que estudaram lá, e todas elas apresentam, de forma mais ou menos explícita, um orgulho de terem estudado lá, sempre que o assunto vem à tona de alguma forma. Alunos de lá são não raro parados na rua por adultos só para estes dizerem de boca cheia que também estudaram lá!

Conversei com dois ex-alunos do Pedro II sobre o orgulho que eles sentem do colégio. Destaquei algumas das melhores falas deles, como se segue:

“O Pedro II é bem único num certo sentido (escola pública boa, sem ser militar ou técnico), e tem uma história bem longa... é a 2a escola mais antiga do país... isso gera um certo orgulho em estudar lá”.

”A tradição de uma instituição é algo que se percebe nos pequenos detalhes”. “Por exemplo, ao se formar lá a gente ganha o título de Bacharel em Ciências e Letras. Isso é coisa da época do Império.”

“O Pedro II representa um outro tipo de modelo. Outro dia eu fui ver o edital do vestibular de historia na PUC e vi:1400 de mensalidade. Quando vc senta na sala de aula e percebe que você está tendo uma boa educação não por causa do sucesso financeiro dos seus pais, mas simplesmente por ser um cidadão deste país – como se educação fosse um direito universal e inalienável – vc sente algo que é inesquecível, a idéia de que existe um outro projeto de sociedade onde as pessoas trabalham para que Todos, Todos, possam subir na vida com base exclusiva no mérito acadêmico, não importando se vc é filho de deputado ou de empregada doméstica (ambos exemplares existiam na minha sala). Quando vc senta numa sala do CPII vc se sente conectado a todos as pessoas do país, pois sabe que naquele momento, milhões de trabalhadores estão dando duro para que vc tenha acesso a esse direito. Vc sente o que é realmente o conceito de sociedade.”

“Na [Universidade] Federal também dá para sentir isso, mas o clima é mto mais duro; no CPII é mais agradável e é mais explícita a sensação de acesso universal.”

“Além do CPII ser a prova experimental viva de que é absurda as teorias de que defendem que a Elite é Elite por ter sido mais inteligente. Muita gente, mas muita mesmo, tem um enorme talento e só não consegue se dar bem não existir mais CPII por aí. Todo mundo fala isso. Mas só um aluno CPII vive isto.”

Claro que, como muitas identidades, elas só se fortificam dentro do indivíduo quando ele está afastado da comunidade imaginada, em “confronto” com pessoas estrangeiras a ela. (é como o súbito nacionalismo que geralmente nos toma quando estamos fora do país, em contato com pessoas de outros lugares). “Melhor que ser aluno do CPII é ter sido aluno do CPII.”

Esse caráter de escola pública de qualidade como motivo de orgulho também está presente, em maior ou menor grau, nas escolas técnicas (o CEFET do Rio de Janeiro é um bom exemplo), nas escolas militares (onde aparece junto com o tradicional e freqüentemente babaca “orgulho de ser militar e servir ao país”), nos colégios de aplicação das universidades (onde aparece junto com a sensação, e uma certa arrogância, de serem um laboratório de novas idéias, uma educação super-avançada, um certo sentimento de elite intelectual).

Por outro lado, no Pedro II aparece bem explicitamente também aquele outro tipo de orgulho ligado ao fato de se estar em instituições tradicionais – sentimento esse que aparece bastante em colégios católicos tradicionais que existem por todo o país. No Rio de Janeiro talvez o São Bento e o Santo Inácio sejam os que demonstrem melhor esse tipo de sentimento (o São Bento exibe no seu site uma lista de nomes de ex-alunos ilustres, hehehe).

(Eu mesmo nunca estudei no Pedro II, mas sinto um certo orgulho da existência dele como mais uma das instituições federais tradicionais que povoam a cidade. No meu caso, o orgulho de existência do Pedro II faz parte do orgulho da ser carioca, mencionado no último post).


O sentimento de identidade em colégios públicos e particulares comuns é bem mais raro. Inclusive, naqueles colégios particulares excessivamente voltados para o vestibular (eu estudei em um deles), em que são muitos os alunos que saíram de seus colégios para fazer o terceiro ano com mais garantias de aprovação, é comum ver se desenvolver um sentimento de “anti-orgulho”. É algo do tipo: ‘eu estudo aqui só pelo interesse, só pra garantir no vestibular, mas odeio isso aqui; colégios comerciais, não vejo como isso aqui pode dar alguma formação decente pra alguém. Meu colégio do coração mesmo era aquele que eu estudava antes de vir pra cá.’ Eu particularmente acho disso algo entre engraçado, hipócrita e estúpido. Mas não deixa de ser um fenômeno bastante interessante.

Auto-identidades

Lembro de ter ouvido uma vez sobre um antropólogo que gosta de fazer análises com a idéia de múltiplos pertencimentos: que cada indivíduo enxerga em si mesmo, de forma superposta, sentimentos de identidade com diferentes grupos de pessoas ou comunidades imaginadas. Pois bem, em mais um momento de auto-reflexão, deixe-me falar sobre os principais pertencimentos que eu enxergo em mim mesmo.

Talvez o pertencimento mais forte que eu enxergue em mim seja o de herdeiro da tradição humanista. Nos séculos XVI e XVII, ao mesmo tempo em que se configurou a tradição de pensamento científica / iluminista, com grande sucesso na física e que nos séculos XVIII e XIX se tornou modelo universal do pensamento ocidental, configurou-se outra tradição inteiramente diferente, que também teve muita força, na qual está inserido todo o debate da modernidade na filosofia, na historiografia, na ciência política, no direito. Especialmente viva na Alemanha, essa tradição contém como alguns de seus pontos altos (pelo menos aqueles dos quais eu mais me orgulho) o historicismo de Dilthey, o existencialismo de Heiddeger e a hermenêutica de Gadamer – que foi quem me contou a história desta forma. As leituras do Gadamer e de alguns outros humanistas alemães e ingleses foi incomparavelmente a coisa mais relevante que eu fiz durante a minha formação universitária (e eu sempre serei grato à minha professora-mãe-acadêmica por ter me inserido nessa árvore genealógica). Certamente pretendo que meus escritos de maturidade façam jus à herança.

Por outro lado, tenho também uma herança inegável da tradição científica / empírica, da qual eu não me orgulho há muito tempo (mas pretendo fazer isso mudar). Estudante de física e de matemática, envolvido até os ossos com o mundo acadêmico da astronomia, com uma formação lógico-matemática nada desprezível, nunca soube exatamente o que fazer com isso tudo, como conciliar com aquele humanismo que pra mim sempre foi mais importante. Estudo bastante de história da ciência, o que é muito mais um discurso humanista sobre a tradição científica do que qualquer outra coisa. Mas ultimamente tenho voltado a me interessar por neurologia – um campo bastante propício ao encontro das duas tradições, com um infinito à frente, a ser explorado. Vamos ver pra onde isso vai.

Além disso, é importante ainda destacar um certo pertencimento a um orientalismo (sim, referência a Edward Said), especialmente com relação à China. Tai Chi Chuan, Acupuntura, filosofia taoísta em geral: dou graças a deus à globalização que me permite uma inserção tão grande no inteiramente outro (e a cultura chinesa me fascina justamente pelo alto grau de elaboração desse inteiramente outro), e me apego com gosto a esta “identidade intelectual chinesa”. E por uma incrível coincidência, não sou o único da família, hahaha.

Para além desses pertencimentos intelectuais gerais, me apego bastante também ao fato de ser brasileiro (é, nacionalismo clássico). Especificamente do ponto de vista intelectual e cultural. Acho que tem algo de bastante único, do ponto de vista de produções teóricas e artísticas, em ser daqui; e costumo gastar bastante tempo tentando definir o que é esse único (em outros termos, o velho problema de definir o que é o brasileiro). A inserção crescente do Brasil me empolga bastante, no sentido de isso ser explicitado; ainda estou esperando ser consolidada a identidade especificamente brasileira da nossa produção intelectual frente ao mundo, e pretendo fazer parte desse processo. Hans-Ulrich Gumbrecht (um dos grandes herdeiros do humanismo que ainda vivem), alemão, aposta que vai ter algo a ver com as nossas concepções antropológicas; acho que é uma boa aposta. Ainda vou escrever bastante sobre isso no blog.

Além da identidade nacional, há as identidades urbanas. Me orgulho da minha carteirinha de carioca, de nascença: de todas as heranças do Rio de Janeiro como ex-capital (e todas as instituições federais que ainda restam por aqui), da integração única e peculiar entre paisagem natural e paisagem urbana – ou da obrigação do urbano de se adequar, humildemente, ao desenho natural da cidade (a maior floresta urbana do mundo!) –, do perfil cultural da cidade (samba, bossa nova, carnaval contínuo, boemia). Mas tenho também outra carteirinha, de paulistano, essa por naturalização. A cidade ferve; tudo passa, tudo acontece tão rápido, o urbano sobre o urbano, tanta gente, tantas culturas. Em coisa de 150 anos passou de uma província em que se falava a Língua Geral (i.e., Tupi) a uma das maiores metrópoles do planeta. Falando em termos bregas, é a nossa própria Nova York ^^. Eu, como fanático por transformações, inconstâncias, novidades, movimento, não posso deixar de gostar tanto de lá.

É num sentido bem parecido com a identidade nacional e a primeira das urbanas que vai a minha identidade como aluno da UFRJ – (enchendo a boca pra falar) Universidade Federal do Rio de Janeiro, ou no antigo nome, Universidade do Brasil. Ser um estudante suportado pelo governo federal, e ainda na sua universidade mais importante. Bom, uma parte enorme da minha formação, direta ou indiretamente, se deve a ela.

Alguma identidade difusa com ser da família L’Astorina, italiana, com bem poucos membros no Brasil, e uma ascendência nobre confirmada mas pouco conhecida. Não é qualquer um que pode ter um sobrenome com apóstrofe! :D

Indo para algo menor (não mais uma comunidade imaginada, mas uma real, em que todos os seus membros efetivamente se conhecem e interagem entre si), não posso deixar de mencionar a Ordem dos Cavaleiros Astronômicos – que, oficialmente, se reveste como Comitê Científico e Didático (CCD) da Olimpíada Brasileira de Astronomia (OBA) [essas siglas engraçadinhas são demais]. É significativo que no meu orkut todas as minhas fotos em grupos de pessoas sejam com eles. Como eu já escrevi em algum lugar, foi e continua sendo a minha forma mais efetiva de fazer algo novo no mundo. E é fantástico pertencer a um grupo em que todos os outros acham essa mesma coisa.

Em termos religiosos, por fim, não tenho nenhuma identidade especialmente forte. A minha educação protestante deixou marcas bem importantes – embora eu não me identifique com nenhum grupo cristão em especial. Mas o Chu, originalmente uma piadinha besta no orkut, apareceu como a simbologia religiosa perfeita pra mim mesmo (O urso panda de 120 metros de altura; a ursificação do amor). Como uma boa open source religion, me dá a prerrogativa de encarnar no Chu todos os valores que eu tenho pra mim mesmo – a identidade perfeita, porque feita sob medida, hahahah. Exposição de valores esta que, aliás, está feita no primeiro post deste blog.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Bandeiras e Escudos III - Produtos Agrícolas

Só pra mencionar mais uma coisa: é interessante notar que o simbolismo dos dois ramos vegetais envolvendo os escudos foi bastante usado nos estados brasileiros também (20 dos 27 escudos de estados), mas sempre, aqui, com referência aos produtos agrícolas que "fizeram a história do Estado". São os produtos de sempre, mas eu quero citar todos:

- Algodão e Cana no Piauí, Pernambuco, Paraíba, Alagoas;
- Cana e Café no Rio de Janeiro e Espírito Santo;
- Café x2 em Minas Gerais e São Paulo;
- Café e Trigo em Santa Catarina;

- Cacau e Seringueira no Pará;
- Cacau e Café em Rondônia;
- Arroz x2 em Roraima;

- Cana e Arroz (com Café e Fumo como "coroa" :S) em Goiás;
- Seringueira e Erva-Mate no Mato Grosso;
- Café e Erva-Mate no Mato Grosso do Sul;

- Pinheiro e Erva-Mate no Paraná;
- Coqueiro e Carnaúba (?!) no Rio Grande do Norte;
- Trabalhador e República na Bahia (maçons!!).


(P.S.: O escudo do Tocantins tem uma frase em Tupi!! O.O Co Yvy Ore Retama - Esta Terra é Nossa. Pena que as plantinhas são as tradicionais e sem-graça folhinhas de louro :/)

Bandeiras e Escudos II - Estrelas

Como estou olhando mesmo as bandeiras dos estados na Wikipédia, vou aproveitar e escrever outro post sobre elas. É interessante como boa parte das bandeiras (ressalvadas as mencionadas no post anterior), foram criadas ao mesmo tempo que a bandeira brasileira, logo antes ou logo depois da Proclamação da República. Isso explica porque elas são tão homogêneas:
8 das 27 (AM, MA, PI, BA, SE, GO, SP, SC) têm listas horizontais no estilo positivista-maçom-bandeiradosEUA. 11 das 27 (AC, AP, RO, RR; PI, CE, SE; GO, MT, MS, DF ) se baseiam no verde-amarelo ou no verde-amarelo-azulescuro (tá, a do DF é plenamente justificável); das que sobraram, outras 5 (AM, PA, MA, BA, AL) se baseiam no vermelho-azul da França, dos EUA e de todas as bandeiras clichê que circulam no mercado.
19 das 27 (!) têm estrelas!

Estrelas!

Na maior parte delas, é uma estrela solitária, fazendo um link com a representação daquele estado na bandeira nacional. Normal, sem graça, esperado das várias bandeiras que foram feitas na mesma época da bandeira brasileira, ou foram feitas depois, por estados mais "novos", criados sem uma identidade local significativa, tendo a identidade nacional como referência muito forte. Ou às vezes é só uma estrela bem discreta, pra manter mesmo a referência. Mas o que me interessou foi que algumas delas possuem representações astronômicas realmente bonitas:
- Pará: o fundo vermelho é cortado por uma faixa branca diagonal, que pode representar o Rio Amazonas na terra e o Zodíaco no céu; no centro da faixa zodiacal, Spica (alfa da Virgem) - a mesma que representa o estado na bandeira nacional, e a única ao norte da faixa "ordem e progresso", já que era o único estado com terras ao norte do Equador na época da Proclamação da República.



- Tocantins: simples e marcante: a mesma faixa zodiacal, azul escuro acima dela, laranja abaixo, o Sol laranja no meio da faixa. E as cores ficaram bonitas :E



- Paraná: no centro da bandeira, um círculo azul-escuro com o cruzeiro do sul desenhado. Até aí nada. Mas é um cruzeiro de cabeça pra baixo (!), em trânsito inferior. E cortando o cruzeiro, deixando apenas Acrux acima, uma faixa branca como o horizonte fazendo o cruzeiro aparecer como aparece em trânsito inferior naquela latitude. Na faixa do horizonte, escrito o nome "Paraná". A bandeira é a referência astronômica do lugar onde o Estado está fixado =~~~~



(é interessante notar que a bandeira do Rio de Janeiro é a única em que a estrela na bandeira não é branca nem amarela; é prateada =~~~)

Bandeiras e Escudos I - Estados e suas Culturas Políticas

Eu gosto de pensar que no Brasil, singularmente, ser "multicultural" faz parte da identidade cultural das pessoas daqui. E gosto também de ver como o país é composto de regiões que são em tudo completamente distintas entre si, apesar de estarem muito bem acomodadas sob uma unidade política (Enquanto na Europa os pequenos recantos com uma certa especificidade cultural ou lingüística ainda fazem guerras civis pra serem politicamente autônomos).

Algo que eu estava pensando nesta linha é que, a despeito da unidade política do Brasil, certas regiões, estados e cidades mantém um cultivo bastante vivo de sua própria história, inclusive de sua própria história política. É uma das vantagens de uma República Federativa: a União e os Estados são instituições independentes - embora mantenham entre si alguma hierarquia.

Eu estava olhando especificamente para as bandeiras e escudos dos estados. É engraçado que muitos dos estados mantém como seus símbolos aquilo que foram símbolos de revoluções políticas emancipacionistas daquelas regiões!! Por exemplo:
- A bandeira de Pernambuco é, a menos de duas estrelas, a bandeira da Revolução Pernambucana de 1817. No escudo do estado de Pernambuco, aparecem as "datas importantes para o Estado": 1710 (Guerra dos Mascates) - 1817 (Revolução Pernambucana) - 1817 (Revolução Pernambucana) - 1824 (Confederação do Equador) - 1889 (Proclamação da República). Com exceção da última, todas as tentativas de Pernambuco fazer um estado no norte independente de Portugal ou do resto do Brasil.

- A bandeira e a capital da Paraíba (à esquerda) são ainda o luto pela morte do candidato à vice-presidência na confusão de 1930. Mas há um certo movimento para encerrrar o luto e retomar a bandeira antiga (à direita).



- A bandeira da Bahia (à esquerda) é um desenho de inspiração norte-americana e maçônica da época da proclamação da república, mas também uma retomada das cores e das inspiraçoes da bandeira da Conjuração Baiana de 1789 (à direita).



- A bandeira de Minas Gerais era para ser a bandeira nacional, segundo o projeto dos Inconfidentes Mineiros. O brasão consegue ser ainda mais maçônico.


- A bandeira de São Paulo foi uma das candidatas a bandeira nacional quando da Proclamação da República, proposta por um jornalista paulistano; depois se tornou a bandeira dos Revolucionários de 32, e depois assumida como a bandeira do estado. Já o brasão foi criado novo pela Revolução Constitucionalista.

- A bandeira do Rio Grande do Sul, por fim, como não poderia deixar de ser, é a bandeira dos Farroupilhas. O brasão do estado até hoje carrega escrito o título de "República Rio-Grandense" (o.O) e a data de independência: 20 de outubro de 1835.


(A bandeira de Santa Catarina infelizmente não é uma referência à República Juliana nem ao Contestado :( )

De resto, são bandeiras que eu considero um pouco sem graça (quase todas têm estrelas e faixas horizontais estilo bandeira dos EUA, elementos com cores verde e amarelo, etc). Engraçado que a bandeira do Estado do Rio de Janeiro não tem nenhuma história relevante por trás; os símbolos das cidade e das instituições da cidade são muito mais carregados de história. E a bandeira e o escudo de Brasília, na sua simplicidade e nas curvas ousadas, são bem marcantes da idéia do que deve ser aquela cidade: moderna, funcional, sem história, mas um palco bonito e organizado para o exercício da política nacional.



Afora as bandeiras sem criatividade que são variações da bandeira brasileira, a bandeira do Distrito Federal é a única que aponta para a união política do país. No entanto, não há grupos nestes estados ainda cultivam valores emancipacionistas (talvez alguns Recifenses, rs). Porque brasileiros não têm problema em se identificar como brasileiros e outras coisas (e. g. brasileiro de terra e registros oficiais, italiano de sangue, gaúcho de coração). As múltiplas identidades não serão um problema em uma nação cuja identidade é inseparável, expressamente, de diversidade.