quinta-feira, 21 de março de 2013

Três estágios da Matemática


As pessoas têm três níveis de contato com a Matemática ou, temporalmente falando, elas aprendem matemática passando por três estágios. O blog do Terence Tao as chama, de forma sem graça, de pré-formal, formal e pós-formal. O Elon Lages Lima, em um artiguinho legal*, chama de conceituação, manipulação e aplicação. Eu os descreveria assim:

1. Uso intuitivo

Existe um nível em que as ideias matemáticas são usadas sem muita preocupação, de forma informal e ligada a conceitos bastante intuitivos. É o que acontece quando dividimos a conta de um restaurante ou jogamos algum jogo de estratégia (como xadrez). Essa fase é bastante trivial e sua demonstração é deixada para o leitor.

2. Formalismo

O movimento do uso costuma trazer, algum tempo depois, o movimento da teorização.  É assim que, ao longo da escola, um aluno vai sendo crescentemente apresentado a conceitos formais e a relações de necessidade lógica, de forma que as noções intuitivas vão se tornando mais organizadas, inter-relacionadas e cheias de consequências. Esse momento inclui a parte formal da Conceituação (que, em boa parte, é motivada pelos conceitos intuitivos) e também a Manipulação, o domínio operacional do formalismo.

Na vida escolar, nenhuma matéria representa melhor a formalização e a necessidade de manipulação que a álgebra. Para um estudante de matemática, ciências naturais ou engenharia,  o ápice da formalização costuma acontecer nos cursos de Análise na Reta, que é quando, pela primeira vez nos cursos regulares, parte-se apenas de conceitos muito elementares (conjuntos e sequências) e constrói-se, seguindo apenas passos dedutivos, um belo edifício (os números, as funções, as derivadas e integrais). É também onde ganham uma importância muito clara as demonstrações e a necessidade de cada conceito ter uma compreensão estritamente formal. Pode-se argumentar que esse é o modo, por excelência, de organização da matemática. É bonito, elegante, e quase todo texto matemático é escrito dessa forma dedutiva.

Quase todo mundo que passou pela escola enxerga, em algum grau, a a matemática como um corpo de conhecimento formal. Mas a maioria não acha isso particularmente bonito. A principal razão para isso é, provavelmente, o foco excessivo, no ensino formal, na  manipulação (como denunciado pelo famoso Lamento de Lockhart). Basta lembrar dos inúmeros exercícios com equações, polinômios e matrizes que aterrorizam estudantes de ensino médio, ou do vazio existencial dos cálculos de integrais de funções absolutamente irrelevantes nos primeiros semestres da faculdade.

A manipulação é parte essencial do aprendizado de matemática, disciplina em que funciona exatamente como na música ou nos esportes. Quando se aprende a tocar um instrumento musical, por exemplo, é necessário passar por inúmeros exercícios repetitivos, solfejos, escalas e outros mais, até que os passos elementares tenham se automatizado e, com isso, saiam do foco dos pensamentos, permitindo que novas ideias apareçam e que se possa concentrar no essencial.  Só muito depois dos torturantes exercícios iniciais é que você pode começar a treinar as músicas de suas bandas preferidas. Assim, por paradoxal que possa parecer, o treino repetitivo é exatamente o que se torna libertador.

Ao contrário da música, entretanto, o próximo estágio da matemática não costuma aparecer nos horizontes das pessoas. Afinal, música é muito mais inserida na cultura geral que a matemática (no melhor estilo das duas culturas do C. P. Snow). Além disso, o foco do ensino na manipulação acaba ocultando o que viria depois. Depois de anos de exercícios repetitivos sem nenhuma recompensa, as pessoas começam a acreditar que a matemática é árida e sem alma, bom para computadores mas ruim para seres humanos. Por outro lado, há quem veja as manipulações como algo sem alma de fato, mas divertido, bom para passar o tempo. Esse é um dos bons motivos para se ensinar matemática muito cedo na escola, na época em que as crianças aceitam brincar com qualquer brinquedo novo (de fato, é a idade em que as crianças aceitam aprender a tabuada, as conjugações verbais e um monte de outros pacotes de memorização bruta). É também um motivo pelo qual aprender um instrumento ou uma língua nova é mais fácil quando se é criança.

3. Pós-formal / Aplicação

O terceiro nível é aquele para o qual o formalismo existe: alimentar e enriquecer as ideias. Enquanto o segundo nível traz ordem e exatidão, o terceiro se reencontra com a criatividade e a imaginação. De fato, o uso intuitivo (primeiro nível) nada mais é que um nível pós-formal de um formalismo que se aprendeu parcialmente mas já se esqueceu (o simples ato de fazer uma conta em um bar envolve conhecimentos aritméticos aprendidos duramente durante os primeiros anos escolares, que se tornaram "informais").

Esse nível é chamado pelo Elon de "aplicação". Essa aplicação não deve ser pensada apenas no sentido das "ciências aplicadas"; ele inclui, de fato, aplicações em situações do mundo real (exigindo a habilidade adicional da modelagem: capturar características essenciais de um fenômeno complexo, para descrevê-lo formalmente e extrair consequências dedutíveis), mas refere-se principalmente à aplicação dos conceitos e do formalismo aos problemas de matemática.

Os problemas de matemática, no sentido "puro" do termo, existem desde muito tempo e são tão tradicionais quanto difundidos. Os pitagóricos da Grécia Antiga se divertiam com eles, os japoneses penduravam plaquinhas de madeira com problemas de matemática na porta dos templos. Resolver problemas é uma atividade divertida, criativa e cheia de imaginação, como pode atestar qualquer estudante que já tenha participado de uma olimpíada de matemática.

Muitos matemáticos concordam que o que há de mais importante na matemática são as ideias. De fato, a parte importante do trabalho de um matemático é ter insights e construir coisas novas. Trata-se de um trabalho criativo, não de um processo enfadonho de ficar seguindo passos lógicos. Talvez seja por isso que, como Lockhart defende, a geometria devesse ocupar lugar proeminente no ensino de matemática: por exigir pouca manipulação abstrata e recorrer sempre à concretude das pistas visuais, ela evidencia mais as ideias e a beleza por trás do formal.

E no entanto o formalismo (ou melhor, as estruturas) é o que caracteriza boa parte da beleza da matemática. Contudo, ao contrário do que se pode pensar ao se ter uma aula de lógica aristotélica, o formalismo não participa como um guia para o pensamento; em vez disso, funciona como uma "resistência", um conjunto de dificuldades que o matemático precisa enfrentar ("essa ideia é boa, agora vamos ver se ela funciona") para dar a suas ideias toda sua plenitude. De fato, partes importantes de uma ideia nascem no processo de formalização da mesma -- como o "por que" delas, isto é, as relações precisas e detalhadas da ideia com suas antecessoras, ou o lugar dela no grande edifício do qual ela faz parte.

Algo parecido acontece com as ciências naturais. Há algum tempo, os epistemólogos concordam que os cientistas não fazem ciência seguindo qualquer tipo de "método científico" (retome-se o sentido original de 'método' como 'caminho'); os experimentos não são guias, mas uma resistência às ideias, um tipo de restrição auto-imposta que, como nos jogos, impede soluções fáceis e, por isso mesmo, estimula a criação de ideias melhores.

A situação é diferente no que tange à apresentação das ideias, que lembra a distinção clássica de Imre Lákatos entre "contexto de descoberta" e "contexto de apresentação": ao apresentar suas ideias, o cientista costuma apresentar sua teoria de forma ordenada, lógica, e como se fosse uma consequência natural de experimentos. Da mesma forma que os matemáticos apresentam suas ideias de forma dedutiva e completamente formal. Faz sentido: como todo designer sabe, apresentar ideias traz necessidades especiais (quando quero aprender uma ideia nova, não quero saber todo o caminho tortuoso que levou alguém a formulá-la); lido inocentemente, contudo, isso esconde um tesouro criativo que só quem já resolveu problemas abstratos sabe do que se trata.

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* "Conceituação, manipulação, aplicações", do livro "Matemática e Ensino", Elon Lages Lima. Sociedade Brasileira de Matemática, 2001.