quarta-feira, 19 de março de 2014

Budas epistemológicos

Na tradição vajrayana (literalmente, do carro de diamante) do budismo, tem os cinco dhyani budas ou budas da meditação. Cada um representa uma sabedoria específica e está associado a uma das cinco cores, cinco direções cardeais, cinco elementos, cinco animais, etc. Como essa é uma das coisas que não é feita pra se entender muito com palavras, não vou ficar explicando aqui. Minha humilde contribuição é apontar esse sistema quíntuplo como um sistema epistemológico interessante.

Os cinco budas são

  • O Azul (Akshobhya) é o da Sabedoria do Espelho: a sabedoria de ver o outro pelo ponto de vista dele próprio, o que gera disposição de acolhimento. Essa sabedoria é uma das grandes marcas das humanidades desde sua fundação no século XIX, no ideal historicista do Dilthey (de se transportar para a época e descrever os eventos históricos como faziam sentido à época, em vez de filiar os eventos a uma linha do tempo trans-histórica que, na verdade, é só o ponto de vista do presente) e na disposição na antropologia de se despir da sua cultura.
    Claro que essa disposição é idealizada (bom, os budas podem porque eles são budas) e nossa capacidade de se colocar no lugar do outro é sempre necessariamente limitada (somos sempre espelhos imperfeitos). A consciência explícita dessa limitação foi parte central da crítica, no século XX, ao idealismo do século XIX, com o reconhecimento, no olhar histórico, da impossibilidade de se despir do olhar do presente e, no olhar antropológico, da contaminação necessária da sua própria cultura (todo olhar pra outra cultura é um fenômeno de cross-culture).
  • O Amarelo (Ratnasambhava) é o da Sabedoria da Igualdade: a sabedoria de reconhecer o que é igual nas coisas, o que todas elas tem em comum, o que gera disposição de doação (ou o reconhecimento de que o que é bom para os outros é bom pra você, em algum grau). Essa é a disposição de qualquer filosofia de tipo platônica: a de buscar princípios e ideias gerais que unifiquem ou permitem compreender as coisas como casos particulares de algo maior. É uma disposição importante da filosofia natural e de posturas racionalistas em geral (se assumir como racional envolve, em geral, despir as coisas da sua diversidade para procurar coisas por trás), mas também de posturas místicas em geral (na tradição grega, ambas as coisas vem da mesma compreensão do conhecimento como aletheia, como desvelamento (literalmente, retirada de véus) do que é o que é, por trás do que aparenta ser. E o Platão é, a um só tempo, um herói dos racionalistas e dos místicos).
    Os limites dessa ideia de subsumir coisas a ideias gerais e seu consequente empobrecimento da realidade são tão repisados que não vale a pena repetir.
  • O Vermelho (Amitabha) é o da Sabedoria Discriminativa: a sabedoria de reconhecer o que é específico nas coisas, o que cada coisa tem de único e particular. É a sabedoria investigativa, catalogadora, esmiuçadora da história natural -- e dos seus descendentes, os cientistas experimentais, que frequentemente acusam os cientistas teóricos de serem amarelos demais. É também algo caro a filosofias realistas (compreender as coisas 'como elas são'), que acusam os racionalistas de serem amarelos demais. As lições aristotélicas se opõem às platônicas por causa do seu buda vermelho, embora o Aristóteles talvez também fosse amarelo demais.
    Mas é claro que ser muito extremista aqui faz você se afogar na multiplicidade infinita e, no limite, impede a produção de qualquer conhecimento por parte de mentes finitas. Mas há os que defendam (eu! eu! eu!) que é melhor o mundo ser experimentado, com todas as suas cores e texturas, que conhecido através de alguma sombra pálida.
  • O Verde (Amoghasiddhi) é o da Sabedoria da Causalidade: a sabedoria de reconhecer cadeias causais, saber reconhecer consequências de suas ações e, portanto, saber agir; é uma sabedoria de realização, forte e irada (como quando alguém grita a outro para que não atravesse a rua, enquanto um carro desavisado aparece e tira uma camada fina de células epiteliais). Saber da causalidade é a base de qualquer conhecimento prático, e é importante na ciência moderna porque ela nasceu de sabedorias práticas de artesãos (como a mecânica, aquela área mais tradicional da física, que procura resumir todos os fenômenos a choques e contatos determinísticos). Nas humanidades, o conhecimento prático mais difundido talvez seja a política (no sentido amplo mesmo): dominar as causas significa saber o valor da ação (a ação no presente que visa um mundo imaginado no futuro, desse jeito bem Era Moderna mesmo).
    Os excessos verdes são os excessos do determinismo e são tão inocentes quanto todos os outros excessos: é importante reconhecer que ninguém domina nada, que o mundo é caótico (oi discordianos) e que, mesmo na parte ordenada dele, há tantos fatores simultâneos que é difícil ter segurança sobre as consequências de uma ação.
  • O Branco (Vairocana) é a sabedoria do meio, o substrato das outras quatro sabedorias, a sabedoria do vazio fundamental de todas as coisas (as coisas só são o que são porque projetamos a luz do nosso olhar nelas; por trás dessa luz, há apenas uma resistência disforme, descaracterizada, descolorida, desconceitualizada, que são as coisas que "estão" antes da nossa percepção delas). Essa sabedoria não é costumeiramente encarada como algo positivo no ocidente, mas como um princípio negativo, de limitação e contenção das outras sabedorias (qualquer ceticismo epistemológico, partilha, em algum grau, desse olhar para o vazio). Mas ela pode ser buscada positivamente, desde que de modo não-conceitual (essa sabedoria é dessas que só aparece muito depois de se abandonar a estada da conceitualização, mas a nossa tradição não costuma sair dessa estrada). Por isso os budistas se calam, contemplam e repousam.

A beleza de cada um

Tem a velha questão de onde reside ou o que gera a Beleza. Essa questão é imediatamente bipolarizada pela pergunta sobre se existe uma ou algumas réguas universais de beleza ou se a beleza é algo apenas individual (tipo a "questão de gosto" kantiana) ou cultural.

Acho importante reconhecer o que existe de "universal" (não no sentido metafísico mas no cognitivo, que é pra onde todos os universais humanos migraram) na percepção de beleza. Dizer que 'é bonito apenas o que dizemos que é bonito' dá poder demais à cultura, gera um determinismo cultural análogo ao determinismo linguístico (ou à forma mais radical dele, em que o pensamento é totalmente limitado pela língua -- o que contradiz francamente a sensação, comumente expressa por filósofos e literatos, de que as palavras não conseguem capturar direito as ideias).

Mas com a ressalva de que isso não se opera de maneira simples, com um ou dois princípios orientando a estética e juízos do tipo "tal coisa é tida como bonita pq obedece a esse princípio". Devem ser vários princípios cognitivos que orientam a percepção de beleza (a começar dos princípios de boa forma da Gestalt), junto com vários elementos da cultura (p. ex. a semelhança ou a filiação ou qualquer reverberação de outras formas reconhecidas naquela cultura). Esses princípios aparecem em diferentes graus, reforçados ou desafiados (por exemplo em composições que querem transmitir tensão, desequilíbrio ou em todos os casos de "beleza do feio"), todos misturados, na criação de formas específicas que, uma vez criados pelas mãos de algum artista, entram na disputa (do tipo "seleção natural") das formas que se consagram em alguma cultura (e depois em outras culturas, uma vez que as culturas interagem o tempo todo). Por exemplo, a forma dos sonetos ou dos haikai, ou do contraponto musical, ou dos pontos de fuga nos quadros.

Daí que as pessoas serem bonitas dependem, em larga medida, delas acharem e fazerem sua beleza. De terem espelho em casa, se olharem, se tocarem, encontrarem padrões de beleza em si mesmas, construírem pra si uma forma, se identificarem com ela. A lapidação dessa forma envolve aspectos externos (a escolha de roupas, de corte de cabelo, de maquiagem) mas envolve um monte de coisas sutis, como postura, expressões faciais e corporais, o encadeamento do discurso no movimento do corpo, etc. Esse processo de auto-construção é mais fácil pra alguns que pra outros, por disposições psicológicas diversas (envolvendo auto-estima, p. ex.) e porque as expectativas ou os gostos formais de alguém podem casar mais facil ou mais dificilmente com o corpo que ele habita (isso inclui todas as pessoas que tem um gosto para corpos moldado apenas pelo mercado de beleza corporal, mas cujos corpos, em princípio, funcionariam sob algum outro padrão formal).

Em resumo: sejam bonitos, encontrem as belezas em vós.