Comecei a ler um filósofo tcheco, Vilém Flusser, tido como um dos poucos filósofos a abordar o lugar do designer no mundo dos homens. No livro que eu estou lendo ("O Mundo Codificado", ed. Cosac Naify), que na verdade é uma coleção de mini-artigos, há uma porção de ideias interessantes. Uma delas é uma divisão da história da relação entre o homem e as coisas em quatro fases:
Na primeira, há a exploração do mundo com a "mão nua", quando o homem explora, de forma direta e imediata, o mundo externo a si. Trata-se de uma construção teórica já que, como o próprio livro menciona, as ferramentas existem há mais tempo que o homo sapiens sapiens.
A segunda é a das ferramentas, que funcionam como uma extensão e próteses das mãos. As informações herdadas se tornam cada vez menos relevantes que as aprendidas. O contato com o mundo passa a ser mediado (o homem cerca-se de suas ferramentas, e de cultura) e as coisas passam a ser cada vez menos colhidas e mais construídas.
A terceira é a das máquinas. É claro que a transição entre as fases é suave e não é possível classificar rigidamente os objetos. Mas uma máquina arquetípica é diferente de uma ferramenta arquetípica em alguns sentidos importantes:
(i) as ferramentas são construídas empiricamente, a partir de um conhecimento razoavelmente direto de como funcionam os materiais e que trabalho precisa ser realizado sobre eles. As máquinas, por outro lado, são construidas por teorias de como as coisas funcionam. A era das Máquinas é, portanto, a era da Ciência Moderna (leia-se, da física, especialmente da mecânica). E, da mesma forma que a ciência existe para a tecnologia (embora possua seu grau de existência autônoma), a filosofia existe para a sociedade e a cultura (embora possua seu grau de existência autonoma). Na era das ferramentas, as filosofias eram ontologias, ou perguntas sobre a natureza do mundo (e a natureza do homem, com sua cultura, nesse mundo). A ontologia é, digamos, uma ferramenta para compreender o mundo. Já na época moderna das máquinas, a Filosofia Moderna ganhou uma inovadora fixação pela epistemologia, ou pela compreensão sobre a compreensão do mundo, ou sobre o conhecimento – mais especificamente, sobre as teorias científicas, essas máquinas de produção de ideias que produzem máquinas.
(ii) as máquinas são melhor vistas não como próteses, mas como autômatos: corpos que imitam os corpos humanos. Corpos mais fortes, duráveis e eficazes (em tarefas específicas) que os humanos. De fato, fizeram sucesso em algum momento do século XVIII francês pequenos autômatos que imitavam movimentos humanos diversos, funcionando apenas com roldanas, alavancas e outros aparatos puramente mecânicos. Um desses pequenos avatares de orgulho dos iluministas, os grandes otimistas desse potencial construtivo da capacidade teórica. Mas são apenas corpos, sem alma, que precisam da iniciativa humana para funcionar.
(iii) justamente por serem filhos grandes e caros (nos dois sentidos) do mundo da teoria, as máquinas tomaram do homem o centro da organização social. Antes um homem trabalhava com várias ferramentas, carregando-as para onde ele necessitava delas. No começo do fim da era das máquinas, elas se assentavam em algum lugar favorável (nas fábricas) e carregava vários seres humanos consigo, formando as cidades industriais. Nas fábricas, os seres humanos passaram a ser peças mais descartáveis, enquanto os mesmos humanos eram o centro vital das oficinas em que o artesão trabalhava com suas ferramentas. Isso chegou ao nível de os seres humanos serem recrutados para trabalharem como máquinas (imitando seu imitador), como peças de trabalho repetitivo em uma linha de produção. Tudo muito estranho e degradante, do ponto de vista da condição humana. Ou, citando diretamente o autor: "A segunda Revolução Industrial expulsou o homem de sua cultura, assim como a priemira o expulsou da natureza, e pro isso podemos considerar as fábricas mecanizadas uma espécie de manicômio".
Mas as coisas felizmente tomam outra cara na quarta fase, a dos aparatos eletrônicos. Novamente, a transição é sempre suave. Aparatos eletrônicos podem ser vistas como máquinas em que operadores fazem movimentos que geram nos aparatos outros movimentos (mesmo que microscópicos, se enxergarmos os elétrons sob uma perspectiva realista). Mas esses movimentos são, em geral, indiretos: o que se quer não é o resultado mecânico da cadeia de movimentos, mas a emergência de padrões abstratos desses movimentos. Essas novas máquinas imitam mais o interior do que o exterior dos humanos: as máquinas ganham alma, e conversamos com elas usando linguagens, programando-as para tarefas específicas, fazendo perguntas e obtendo respostas. Mesmo as máquinas cujo fim é gerar movimento (digamos, uma impressora) faz isso mediada por uma alma desse tipo, obedecendo a um "imprima" dito em alguma linguagem que a máquina entenda.
O arquétipo aqui são as máquinas com muita alma e pouco corpo (digamos, computadores). Como é próprio do mundo das ideias, elas em geral não são especializadas, mas multitarefas (tão mais multitarefas quanto mais "cheias de alma" – compare o computador com um relógio de pulso). Isso libera os humanos da escravidão das máquinas monótonas. Ou, se quiser: os computadores podem, como os humanos com corpo e alma, usar ferramentas para tarefas específicas, como imprimir.
Os aparatos liberam os homens também das máquinas grandes: como os movimentos deste tipo de objeto interessam indiretamente, através de abstrações que eles representem, não há qualquer necessidade especifica de meio, modo ou escala para eles. Em particular, os movimentos de elétrons foram uma maneira particularmente compacta e maleável de fazê-lo. Assim, os aparatos eletrônicos podem ser pequenos e portáteis, como as ferramentas um dia foram, liberando-nos para criarmos, como antes, nossa própria geografia e nosso próprio ritmo.
Nessa era, a cátedra das ciências passou a ser ocupada, naturalmente, pelas ciências cognitiva, herdeira da biologia e da linguística das antigas gerações – liberando a física para especulações mais obscuras e recônditas, terras para onde se dirigiram também as antigas ontologias, no início da época das máquinas. Não é à toa que se dê o nome de "redes neurais" para os aparatos eletrônicos espertos o suficiente para aprender e ter alguma autonomia espiritual. Mas o que fará a filosofia da era dos aparatos eletrônicos é algo menos claro; as teorias são incrivelmente mais importantes para construir os aparatos, mas a filosofia desconstruída não as leva mais tão a sério. Com o que se preocupará então?
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
domingo, 2 de dezembro de 2012
Linguagem
Linguagem foi algo inventado para conectar-se com espíritos, isto é, com aquilo que não é alcançavel pelos sentidos. É claro que a linguagem usa os sentidos, não haveria outra maneira; usa-os, contudo, apenas como via. As palavras, ou partículas de uma linguagem, servem como carros que vestem as palavras no frio do mundo exterior (sim, as pessoas se vestem com carros) e as transportam por aí.
Os espíritos, aqui, incluem os computadores. Mas para amenizar o incômodo que essa frase sugere, digo logo que objetos, computadores, seres etc. podem ser ordenados pelo quanto eles resistem à vontade alheia (ou seja, por quão autônomos eles são). A maioria dos computadores pessoais resiste muito pouco, fazendo basicamente o que mandamos (é claro que, com computadores e com pessoas, a falta de domínio da linguagem do outro é, por si, uma resistência enorme). Mas há computadores muito mais autônomos (essa coisa que chamam, em computação, de "redes neurais") e também há cachorros autônomos e seres humanos, sobretudo. Mas seres humanos não são testados tanto pela sua resistência à vontade de outros seres humanos, mas porque não testamos tanto; consideramos que Autonomia é um valor fundamental das relações humanas e, por isso, evitamos forçar a barra. Mas o passado (e as ravinas da sociedade presente) tem algumas histórias tristes sobre isso.
A matéria também tem graus diferentes de resistência à vontade. As ferramentas, como os animais domésticos, são versões significativamente mais irresistentes delas. Mas toda a matéria tem resistência, o que explica o esforço que fazemos contra ela. Em um campo um pouco diferente, aparece sob o mesmo conceito: a "resistência" que ela oferece, através dos experimentos, à livre teorização nas ciências naturais (Galison).
Arquitetura de ideias
Quatro anos depois, eu queria dialogar com o post das minhas auto-identidades.
Em primeiro lugar, me considero um homem das ideias. Viver com as ideias me traz mais felicidade do que viver com as coisas ou viver com as pessoas (embora haja muitas ideias na convivência com as pessoas e com as coisas – na medida em que isso me estimula às interações sociais, eu me sinto um vampiro).Sou, como alguns copacabanenses que conheço, um protótipo do que se pode imaginar que fossem os idealistas alemães do século XIX. Não exatamente isso, porque os idealistas alemães já foram. Eles já tiveram a chance de organizar o mundo dos homens, que é o que expõe suas fraquezas, faz nascer as suas críticas, e leva a novas ordenações. Como um cidadão do XXI, não pude, responsavelmente, ser imune às críticas ao idealismo: a pluralidade, os relativismos e os sentidos.
Mas os sentidos. A vida sensorial sempre foi para mim muito atraente, bem mais que a vida verbal. Com as palavras, tenho alguma relação de amor e ódio (a ser possivelmente explorada em próximos posts). Mas eu diria que a vida sensorial me interessa principalmente em três sentidos:
Em primeiro lugar, me considero um homem das ideias. Viver com as ideias me traz mais felicidade do que viver com as coisas ou viver com as pessoas (embora haja muitas ideias na convivência com as pessoas e com as coisas – na medida em que isso me estimula às interações sociais, eu me sinto um vampiro).Sou, como alguns copacabanenses que conheço, um protótipo do que se pode imaginar que fossem os idealistas alemães do século XIX. Não exatamente isso, porque os idealistas alemães já foram. Eles já tiveram a chance de organizar o mundo dos homens, que é o que expõe suas fraquezas, faz nascer as suas críticas, e leva a novas ordenações. Como um cidadão do XXI, não pude, responsavelmente, ser imune às críticas ao idealismo: a pluralidade, os relativismos e os sentidos.
Mas os sentidos. A vida sensorial sempre foi para mim muito atraente, bem mais que a vida verbal. Com as palavras, tenho alguma relação de amor e ódio (a ser possivelmente explorada em próximos posts). Mas eu diria que a vida sensorial me interessa principalmente em três sentidos:
- Na medida em que os estímulos sensoriais geram novas ideias e, algumas vezes (raramente), novas sentenças.
- Como uma consequência de algumas séries de ideias, que apontam (mas, claro, não presentificam) para os sentidos como forma fundamental de perceber o mundo. Aqui dá pra citar a minha genealogia *: historicismo, existencialismo, hermenêutica e após: Heiddeger, Gadamer e Gumbrecht.
- Como uma forma de equilibrar a vida com as ideias e torná-la mais, bem, possível de viver. É o que herdei do taoísmo, de seus filhos e seus primos distantes (tai chi chuan, yoga, etc.): com isso, o espírito pode sair do turbilhão laranja de ideias e fluir para a ponta dos dedos. Ou, se preferir, a mente e as ideias se tornarem difusas pelo corpo. Isso impede que a cabeça, esse grande ringue ou bordel de ideias, exploda. Ok, mas mais que isso: faz elas interagirem com uma riqueza nova e especial (objeto de futuros posts).
Em particular, as ideias (e essas interferências da variedade dos sentidos) me leva a ter uma relação especial com as ideias de ordem e caos. Principalmente a fronteira entre elas, as travessias de um para outro. No mundo das ideias, meu passatempo preferido é a arquitetura de ideias: como juntá-las e construir com elas. Construir castelos de areia, que o vento leva e você refaz de outro jeito. É o que se faz (ou o que se faria, mas...) na vida intelectual acadêmica.
Ênfase na areia. Eu não sou um homem da ordem (qualquer um que tenha passado mais de 15 minutos comigo sabe disso :P). Não sou como os meus colegas da matemática, uma das minhas fontes de formação. Eu sempre disse que, se matemática é poesia, eu sou um linguista. Porque eu sou um homem da ordem parcial. Gosto de ter nas mãos o que eu não posso segurar, gosto de pegar isso e moldar. Ou, conversamente, ver onde o seguro, sutilmente, transborda: chupar o caos dos poros da ordem (é o que me motiva aos temas de tradições intelectuais alternativas/ outsiders, superposições de ordens de épocas diferentes na sociedade ou no tecido urbano, e diversas outras formas de olhar a desordem, sempre existente mas às vezes bem escondida, nas bordas dos sistemas ordenados). Os matemáticos viajam e constroem ao longo dos reinos da ordem. Mas sem o peso do que não pode ser abraçado, não tem graça pra mim. A verdade é essa: matemática me deixa entediado.
(É um pouco por isso que a física como vida intelectual deixou de ser uma opção para mim, no longínquo passado. No início, construir castelos de ideias usando dados experimentais como vigas foi uma ideia promissora. Mas os físicos são, hoje, muito mais chatos do que já foram. E presunçosos. E não muito tolerantes.)
A ordem parcial foi também o que me atraiu de volta para a linguística, através da via olímpica. Um problema de linguística é, essencialmente, uma maneira aberta de se construir ordens parciais para agrupar dados linguísticos de muitas cores e texturas. Uma fonte ilimitada de prazer e diversão, e que pode ser reconciliada com meu interesse linguístico mais antigo: a tubulação dos prédios da arquitetura de ideias é a arquitetura dos conceitos (e, em particular, dos pedaços de semântica).
Classicamente, isso me faria ir parar na filosofia? Provavelmente na filosofia natural. Mas outra escola me comprou, e minha linhagem foi feita em outro lugar: na história das ideias. Culpa dos supra- e antecitados historicismo (as limitações do tempo), existencialismo (as limitações da existência particular e contingente) e hermenêutica (as limitações das linguagens, as públicas e as mentais). E do taoísmo e da pós-hermenêutica, com as limitações do corpo, da matéria e do que se presentifica.
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* É interessante que, como pode parecer, em alguns cenários intelectuais (como o da historiografia francesa) as pessoas preferem se agrupar sincronicamente em "gerações" que se suscedem (Annales, Nova História, Nova Nova História, etc. – algo que, quatro anos atrás, eu gostava de chamar de "Síndrome de Revolução Francesa") e em outros (como o das humanidades na Alemanha), elas preferem um agrupamento diacrônico [não gosto dessa palavra], em "linhagens" que coexistem ao longo do tempo (e procuram traçar seus pais, avós, bisavós, etc. da vida intelectual).
Ressurectio
Quatro anos depois, resolvi ressuscitar este blog. Em um novo momento de estabilidade na vida, relaxo um pouco no que estou fazendo, ou tenho feito, e começo a me reencontrar, ou reencontrar quem eu quero ser. Esses pedaços com os quais eu esbarro, fragmentos de ideias, que podem chocar boas construções, precisam ser depositados em algum lugar. Um blog é interessante para isso, porque será uma casa no grande campo das ideias, que outras pessoas eventualmente podem achar, e chocar suas próprias construções.
Talvez eu ressuscite também o blog roxo, o gêmeo poético deste.
Talvez eu ressuscite também o blog roxo, o gêmeo poético deste.
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