Lembro de ter ouvido uma vez sobre um antropólogo que gosta de fazer análises com a idéia de múltiplos pertencimentos: que cada indivíduo enxerga em si mesmo, de forma superposta, sentimentos de identidade com diferentes grupos de pessoas ou comunidades imaginadas. Pois bem, em mais um momento de auto-reflexão, deixe-me falar sobre os principais pertencimentos que eu enxergo em mim mesmo.
Talvez o pertencimento mais forte que eu enxergue em mim seja o de herdeiro da tradição humanista. Nos séculos XVI e XVII, ao mesmo tempo em que se configurou a tradição de pensamento científica / iluminista, com grande sucesso na física e que nos séculos XVIII e XIX se tornou modelo universal do pensamento ocidental, configurou-se outra tradição inteiramente diferente, que também teve muita força, na qual está inserido todo o debate da modernidade na filosofia, na historiografia, na ciência política, no direito. Especialmente viva na Alemanha, essa tradição contém como alguns de seus pontos altos (pelo menos aqueles dos quais eu mais me orgulho) o historicismo de Dilthey, o existencialismo de Heiddeger e a hermenêutica de Gadamer – que foi quem me contou a história desta forma. As leituras do Gadamer e de alguns outros humanistas alemães e ingleses foi incomparavelmente a coisa mais relevante que eu fiz durante a minha formação universitária (e eu sempre serei grato à minha professora-mãe-acadêmica por ter me inserido nessa árvore genealógica). Certamente pretendo que meus escritos de maturidade façam jus à herança.
Por outro lado, tenho também uma herança inegável da tradição científica / empírica, da qual eu não me orgulho há muito tempo (mas pretendo fazer isso mudar). Estudante de física e de matemática, envolvido até os ossos com o mundo acadêmico da astronomia, com uma formação lógico-matemática nada desprezível, nunca soube exatamente o que fazer com isso tudo, como conciliar com aquele humanismo que pra mim sempre foi mais importante. Estudo bastante de história da ciência, o que é muito mais um discurso humanista sobre a tradição científica do que qualquer outra coisa. Mas ultimamente tenho voltado a me interessar por neurologia – um campo bastante propício ao encontro das duas tradições, com um infinito à frente, a ser explorado. Vamos ver pra onde isso vai.
Além disso, é importante ainda destacar um certo pertencimento a um orientalismo (sim, referência a Edward Said), especialmente com relação à China. Tai Chi Chuan, Acupuntura, filosofia taoísta em geral: dou graças a deus à globalização que me permite uma inserção tão grande no inteiramente outro (e a cultura chinesa me fascina justamente pelo alto grau de elaboração desse inteiramente outro), e me apego com gosto a esta “identidade intelectual chinesa”. E por uma incrível coincidência, não sou o único da família, hahaha.
Para além desses pertencimentos intelectuais gerais, me apego bastante também ao fato de ser brasileiro (é, nacionalismo clássico). Especificamente do ponto de vista intelectual e cultural. Acho que tem algo de bastante único, do ponto de vista de produções teóricas e artísticas, em ser daqui; e costumo gastar bastante tempo tentando definir o que é esse único (em outros termos, o velho problema de definir o que é o brasileiro). A inserção crescente do Brasil me empolga bastante, no sentido de isso ser explicitado; ainda estou esperando ser consolidada a identidade especificamente brasileira da nossa produção intelectual frente ao mundo, e pretendo fazer parte desse processo. Hans-Ulrich Gumbrecht (um dos grandes herdeiros do humanismo que ainda vivem), alemão, aposta que vai ter algo a ver com as nossas concepções antropológicas; acho que é uma boa aposta. Ainda vou escrever bastante sobre isso no blog.
Além da identidade nacional, há as identidades urbanas. Me orgulho da minha carteirinha de carioca, de nascença: de todas as heranças do Rio de Janeiro como ex-capital (e todas as instituições federais que ainda restam por aqui), da integração única e peculiar entre paisagem natural e paisagem urbana – ou da obrigação do urbano de se adequar, humildemente, ao desenho natural da cidade (a maior floresta urbana do mundo!) –, do perfil cultural da cidade (samba, bossa nova, carnaval contínuo, boemia). Mas tenho também outra carteirinha, de paulistano, essa por naturalização. A cidade ferve; tudo passa, tudo acontece tão rápido, o urbano sobre o urbano, tanta gente, tantas culturas. Em coisa de 150 anos passou de uma província em que se falava a Língua Geral (i.e., Tupi) a uma das maiores metrópoles do planeta. Falando em termos bregas, é a nossa própria Nova York ^^. Eu, como fanático por transformações, inconstâncias, novidades, movimento, não posso deixar de gostar tanto de lá.
É num sentido bem parecido com a identidade nacional e a primeira das urbanas que vai a minha identidade como aluno da UFRJ – (enchendo a boca pra falar) Universidade Federal do Rio de Janeiro, ou no antigo nome, Universidade do Brasil. Ser um estudante suportado pelo governo federal, e ainda na sua universidade mais importante. Bom, uma parte enorme da minha formação, direta ou indiretamente, se deve a ela.
Alguma identidade difusa com ser da família
L’Astorina, italiana, com bem poucos membros no Brasil, e uma ascendência nobre confirmada mas pouco conhecida. Não é qualquer um que pode ter um sobrenome com apóstrofe! :D
Indo para algo menor (não mais uma comunidade imaginada, mas uma real, em que todos os seus membros efetivamente se conhecem e interagem entre si), não posso deixar de mencionar a Ordem dos Cavaleiros Astronômicos – que, oficialmente, se reveste como Comitê Científico e Didático (CCD) da Olimpíada Brasileira de Astronomia (OBA) [essas siglas engraçadinhas são demais]. É significativo que no meu orkut todas as minhas fotos em grupos de pessoas sejam com eles. Como eu já escrevi em algum lugar, foi e continua sendo a minha forma mais efetiva de fazer algo novo no mundo. E é fantástico pertencer a um grupo em que todos os outros acham essa mesma coisa.
Em termos religiosos, por fim, não tenho nenhuma identidade especialmente forte. A minha educação protestante deixou marcas bem importantes – embora eu não me identifique com nenhum grupo cristão em especial. Mas o Chu, originalmente uma piadinha besta no orkut, apareceu como a simbologia religiosa perfeita pra mim mesmo (O urso panda de 120 metros de altura; a ursificação do amor). Como uma boa open source religion, me dá a prerrogativa de encarnar no Chu todos os valores que eu tenho pra mim mesmo – a identidade perfeita, porque feita sob medida, hahahah. Exposição de valores esta que, aliás, está feita no primeiro post deste blog.