sexta-feira, 19 de abril de 2013

Restos estruturais

Quando eu era adolescente, eu tinha a paranóia de conseguir fazer um mapa de todo o conhecimento, como as áreas de saber se dividiam e se agrupavam e tal. Eu queria um esquema universal, um pouco melhor que os que eu já conhecia (todos pareciam insatisfatórios, especialmente e em primeiro lugar a divisão tripartida entre "exatas", "humanas" e "biológicas" que a escola usava).

Em algum momento, me ocorreu que esses mapas mudam com o tempo (como não poderia deixar de ser, diria o meu futuro eu historicista), então que, para obter mapas bons, eu precisaria olhar para a forma como o conhecimento se organizava em épocas específicas (e justificar alguns mapas ruins de hoje em dia como mapas atrasados, de outras épocas). Em um terceiro momento, percebi que a coisa era mais complicada, porque as coisas velhas permanecem, como fósseis, entre as coisas novas, fazendo com que todo mapa desse tipo seja incoerente e anacrônico.

Esses restos de ordem antiga, que permanecem, incrustados e muitas vezes invisíveis, nas novas formas de organizar o mundo, aparecem em muitos domínios. Penso nos restos de língua que ficam escondidos em línguas novas, como nomes de rios e montanhas (os nomes tupi no Brasil e os nomes de origem desconhecida, mas provavelmente não indo-européia, na topografia da Europa), restos que o Daniel Roazen  chama de "substratos", fazendo analogia com as camadas de terra dos geólogos. Mas penso também em coisas físicas, como as casas velhas e os terrenos vazios na Av. Paulista, ou em qualquer outra avenida imponente (sempre há terrenos estranhos, porque a tendência urbana nunca cobre todos os espaços). E penso também em pessoas, como aqueles professores universitários velhinhos, que não estão nem aí para o modo como os cursos e a universidade se organizam hoje em dia, porque eles são resquícios vivos de uma outra maneira de ordenar as coisas (e porque novas ordens de pensamento não se impõem com as pessoas mudando de ideia, mas com as pessoas velhas morrendo e as jovens sendo educadas no novo paradigma).

Mas outro fenômeno interessante (o motivador inicial deste post) é quando uma área de tradição antiga é englobada, abraçada por uma área nova. O design, quando surgiu como um campo especificamente reconhecido (em algum momento entre a segunda revolução industrial e a Bauhaus), engolfou várias áreas que tinham uma tradição própria, como a tipografia. Hoje a tipografia é vista como uma área, uma especialização do design, mas ao mesmo tempo ela é algo com tradição própria: quando o design se definiu, os tipógrafos já existiam e estavam lá resolvendo seus próprios problemas. Coisas parecidas acontecem o tempo todo; um exemplo mais clássico pode ser a absorção, pelos filósofos naturais (futuros "cientistas"), das práticas alquímicas e herbárias.

Se lembrarmos que ideias (infelizmente?) não flutuam livres por aí, mas se restringem aos aquários das cabeças de pessoas, dá pra ver o que muda de uma situação para outra: as pessoas envolvidas (aquelas novas que são educadas no novo paradigma) têm um treinamento diferente e se identificam com uma comunidade diferente. Depois de algum tempo, todos os tipógrafos passaram a ser designers, com o treinamento e a perspectiva geral de um deles. Isso obviamente impactou o campo, trouxe problemas novos e novas maneiras de ver os problemas velhos. Em particular, essa questão aparece toda vez que se resolve montar um novo curso de graduação (pelo menos no Brasil e nos países em que os cursos têm estruturas rígidas) (e também foi uma questão que eu me deparei quando tinha dúvida sobre cursar física ou astronomia: caso típico em que uma subsumiu a outra, que contudo tem uma tradição própria mais antiga): eles servem para especializar, isolar as pessoas da classe mais ampla, o que às vezes é visto como necessário, para firmar um campo novo com identidade própria / exigências muito específicas, ou apenas um reflexo de uma especialização que já aconteceu no mundo da pesquisa.

sábado, 6 de abril de 2013

Como ser criativo (John Cleese)


Não costumo postar videos (nos últimos três anos, eu não costumava postar), mas esse é do John Cleese, um dos atores (e roteiristas) do Monty Python, o avatar do humor inglês nonsense. Existem milhares de sketches deles que eu amo e acho brilhantes, mas hoje quero postar um video sério (" ") do John Cleese, uma palestra dele chamada How to be creative:



A forma da palestra é bizarra e nonsensicamente boa, com piadas absolutamente imbecis introduzidas no meio da fala em momentos meio aleatórios (a partir de algum momento, começam a ser usadas para marcar a separação entre as partes da palestra). Além disso, o texto é muito bom, dialoga com um monte de ideias interessantes que flutuam por aí. Quero destacar algumas que me ocorreram:


  1. O mote inicial da primeira parte da palestra [no video, a partir de 6:30] é a distinção dele entre os modos aberto (relaxado, expansivo, inútil, contemplativo, humoroso e criativo) e fechado (ativo, tenso, impaciente, excitante, cheio de propósito) de trabalho humano. Lembra muito a dinâmica de Crise e Paradigma que o Thomas Kuhn usa como estrutura para a história da ciência. (eu pessoalmente não acredito em estruturas históricas, minhas religião é outra; mas preciso reconhecer que a noção de "paradigma" do Kuhn foi a ideia mais popular que a comunidade de história da ciência deixou para o resto da humanidade, até agora).
     
  2. A aproximação entre criatividade e jogo, no conceito de 'jogo' do Johan Huizinga: o homem é um jogador (homo ludens) tanto quanto é um sabedor (homo sapiens) e um fazedor (homo faber). que os historiadores também usam para descrever processos históricos. A noção de jogo (não só como cálculos de sorte e estratégia como os matemáticos costumam encarar, mas com a dimensão lúdica) acabou desempenhando um papel interessante na história da política e da cultura mas, principalmente, na história dos conceitos (um exemplo com Gumbrecht).
        
  3. A aproximação entre criatividade e meditação, no sentido de que ambos precisam de ócio, de se isolar em um espaço e em um tempo entre paredes, aquietar a mente e eliminar os ruídos e os hábitos, para deixar, assim, que as coisas do fundo emerjam. Também no sentido de que ambos levam a estados "transcendentes", no sentido de "deslocados do fluxo ordinário das coisas" (mesmo que dure apenas uma fração de segundos). Também o jogo, pro Huizinga, funciona porque acontece dentro de parênteses no resto da vida.
        
  4. O destaque do humor como maneira rápida de atingir a iluminação. É claro que ele está falando do tipo de humor nonsense que ele praticava enquanto membro e roteirista do Monty Python, que cria conexões inesperadas e, com isso, nos faz olhar as coisas por ângulos novos (que é talvez a ideia de humor mais próxima do nosso conceito de criatividade). É precisamente a estratégia que os mestres budistas da linhagem zen usam com suas historinhas bizarramente sem sentido (ou outras atitudes ainda mais sem sentido, como gritar e bater em discípulos como resposta a uma pergunta), com o objetivo de trazer a iluminação no sentido meditativo. É também o que fazem os discordianos (que se definem como "zen para ocidentais"), como neste meu exemplo preferido. Há pelo menos um textinho do Rubem Alves ("Koan", no livro sobre a Escola da Ponte) que defende que o método budista deveria ser estendido a toda educação formal (porque, como ele diz, a educação tem que servir para "deseducar", porque só desaprendendo se aprende algo de verdade).
        
  5. A técnica de ficar saltando entre coisas completamente sem sentido até parar em algo que faz sentido de um jeito novo (a versão psicodélica do método de tentativa-e-erro). Conheço alguns grupos que usam isso ostensivamente em processos criativos (um deles um grupo de que faço parte, o CCD). É interessante que ele opõe isso ao pensamento lógico ordenado – modo em que, ao contrário do que ele parece insinuar, nem os cientistas (como ilustrado bem pelos inúmeros exemplos do Lakatos e do Feyerabend) nem os matemáticos (que usualmente operam no terceiro estágio) operam para criar. A necessidade de passos seguros tem mais a ver com o modo fechado de operar, ou ainda com um terceiro momento, o de arrumar a casa (transformar o resultado de um brainstorm em algo limpinho que se possa exibir e usar).

Poser

Eu estava por aqui ouvindo minha nova banda brasileira preferida, Mohandas. Em particular, a música "Saudade do Pará". Como definiu um dos integrantes, trata-se de um tipo de saudade de algo que não se viveu. De fato, todos os integrantes são cariocas da gema, de classe média e, aparentemente, sem nenhuma relação familiar mais direta com o Norte do Brasil.

Eu também não tenho qualquer relação mais direta com a cultura do Pará, e para ser sincero sempre achei bem bregas (ha!) as músicas de lá – mais do que não me identificar, me desidentifico com elas. Mas a música do Mohandas mudou isso, me fez enxergar um tipo de beleza poética que eu nunca tinha visto, porque ficava escondida por trás de uma nuvem de estranheza que me afastava daquilo. Mas agora que vejo, começo a gostar também das músicas realmente paraenses, aquelas mesmas estranhas. E é assim que me torno um poser de forró.

O mesmo acontece por aí com tribos de punks, etc., ou, para ficar no mesmo contexto, dos jovenzinhos sambistas da Zona Sul do Rio (dentre os quais eu parcialmente me incluo). Aponta-se comumente que esses jovens "não sabem o que é samba", nunca subiram num morro (dos antigos, porque muita gente não sabe, mas nos morros de hoje não se faz mais samba, se faz funk), nunca foram malandros duros e sem dinheiro mas que davam qualquer coisa por uma bunda rebolando ou uma dose de cachaça (uma imagem um tanto romantizada, porque eu também não faço ideia do que era ser um malandro). Mas há algo no samba que os inspira, que os leva até ele, algo que foi peneirado e mediado, por uma tradição que talvez tenha começado com a bossa nova (que fez um samba mais leve, com harmonias mais complicadas, mais fácil de difundir através de outras camadas e grupos sociais). Tom e Chico não eram exatamente meninos de morro, afinal. Mas assim, com pessoas vivendo entre dois mundos, houve mediação, houve uma ponte entre dois mundos, houve troca e inspiração através.

Houve a formação dos posers de samba, aqueles que nunca viveram nada parecido com a realidade da qual aquelas músicas emergiam, que no entanto se inspiravam por alguma coisa ali, que não necessariamente entendiam, mas que fazia algum sentido diferente quando projetado no outro mundo. E que cultivaram essa coisa, referindo-se às raízes mas fazendo algo muito diferente e, ao mesmo tempo, herdeiro, cultuante, reavivador daquilo que era de outro. Algo assim bem estranho, como o tango na Finlândia.

Num mundo cheio de incomensurabilidades, é reconfortante saber que a mediação é possível, que as pessoas, sendo posers, são capazes de criar.